terça-feira, 19 de setembro de 2017

BREVE HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

BREVE HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA ( I ).
Rev. João Ricardo Ferreira de França.
INTRODUÇÃO:                     
No estudo da Hermenêutica Bíblica é necessário compreendermos os caminhos percorridos pelos primeiros intérpretes da Palavra de Deus para a condição da hermenêutica atual.
Neste estudo observaremos uma breve história da Interpretação com vista à compreensão dos processos e métodos hermenêuticos existentes na atualidade; pois, somente uma caminhada na história da interpretação poderá nos auxiliar no caminho a seguir para uma interpretação segura da Palavra de Deus.
I – A INTERPRETAÇÃO DO ANTIGO TESTAMENTO.
O Antigo Testamento é o primeiro documento da Escritura Sagrada a exigir uma interpretação. Quando lemos Neemias 8. Neste trecho vemos que o povo que regressara do exílio babilônico não compreendiam o que linha na Bíblia, por isso, Neemias e Esdras providenciaram os Targums que significa aqueles que explicam o texto.[1] E assim temos o primeiro processo interpretativo para a comunidade pectual.
1.      A Interpretação judaica no inicio da era Cristã:
Nos primórdios da era Cristã os rabinos judeus tendiam a seguir duas abordagens básicas para se detectar o sentido do texto sagrado.
a)      O Peshar:  É conhecido como o sentido “claro” ou “simples” que deriva a ideia de sentido literal ou sentido histórico do texto.
b)      O Remaz: Conhecido como sentido oculto da lei mosaica[2], dentro desse conglomerado. Havia também o sentido conhecido como derush termo geralmente usado para descrever o processo da exegese. O termo pode ser compreendido a partir da língua hebraica, no uso da palavra vr:*d< (derash) que tem uma gama de significados entre os quais temos: “tirar informações, indagar, procurar, buscar, preocupar-se, examinar, inquirir, pesquisar, exigir; ansiar” [3] e aqui denota “o estudo intenso, ou exame do sentido de uma passagem”.[4]
2.      A Interpretação Rabínica
Na interpretação rabínica desenvolveu-se grandes coleções de escritos interpretativos que no período cristão passou a ser conhecidos como o Mishnah, o Gemara e o Talmude.[5] Para nossos propósitos didáticos iremos apresentar apenas as regras de interpretação do famoso rabino Hillel:[6]
Regra 1: Inferência do sentido mais brando para o mais forte. Isto seria basicamente o que fazemos em filosofia dentro do silogismo. Partimos da premissa menor (o sentido mais brando) para uma premissa maior (sentido mais forte). O principio hermenêutico estabelecido é que aquilo que é verdade sobre o menor é igualmente verdade para o sentido maior.
P.e. Levando em consideração que o Sábado é mais importante  do que outros dias festivos, e aquilo que possa ser restrito no dia de Sábado era ainda singularmente mais aplicável ao dia de Sábado.
Regra 2: Analogia de expressões: As ambiguidades de passagens bíblicas eram superadas quando se fazia referências às expressões semelhantes dentro do corpo canônico.
P.e – A passagem de Levítico 16.29 diz que os judeus deveria afligir a alma no dia da expiação e  forma desse “afligireis a vossa alma” foi interpretada como um abster-se da comida com base na analogia da passagem de Deuteronômio 8.3 que usa a mesma expressão em referência ao estar com fome.
Regra 3: Aplicação por analogia com uma cláusula ou a extensão do específico para o geral.
Um principia geral era construído sobre a base de um ensinamento contido num versículo.
P.e. O caso de um homicídio culposo (sem a intenção) conforme descrito em Deuteronômio 19.
Regra 4:   Aplicação por analogia com duas cláusulas.
Isto significa que duas cláusulas bíblicas servem de base para um principio geral. Por exemplo, vemos em Êxodo 21.26-27. Nesta passagem lemos que se um escravo viesse a ter um “dente” ou um “olho destruído” este mesmo princípio deverá ser aplicado as outras partes do corpo.
Regra 5: Inferência de um princípio geral par um caso ou exemplo específico. Essa regra pode ser usada de duas maneiras – do geral para o específico ou vice-versa.
P.e O que é dito em Êxodo 22.9 – “qualquer coisa” pode ser aplicado a qualquer coisa que foi tomada por empréstimo e perdida e que deve ser reembolsada.
Regra 6: Explicação de outra passagem
            O uso de outra passagem para explicar a primeira passagem com vista a elucidação. Por exemplo, se o cordeiro pascoal deveria ser abatido caso o dia da páscoa caísse em sábado? Segundo esse princípio Números 28.10 fala de “sacrifícios diários” e por isso, o cordeiro deveria se sacrificado para a páscoa não importando o dia para isso.
Regra 7: Aplicação de uma inferência evidente por si só em um texto.
            Esta regra lembra que nenhuma declaração deve ser tomada de modo isolado, mas somente à luz do seu contexto.


II – A INTERPRETAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO.
            Neste momento o nosso estudo se ocupará em lidar com as questões relacionadas com a interpretação neotestamentária desde a forma como o Novo Testamento interpreta o Antigo até as avaliações interpretativas deste segundo testamento.
Antes de tudo devemos lembrar que há “224 citações diretas do Antigo Testamento dentro do Novo Testamento”.[7] Cristo fez bom uso do Antigo Testamento através de seus ensinos (Marcos 2.25-28 e João 7.23; João 10.34-36).
Paulo também faz bom uso no Antigo Testamento no Novo Testamento. Vemos ele valer-se de uma alegoria para referir-se a relação que o Cristão tem com a Lei conforme lemos em Gálatas 4.24-31.
No capítulo 10.1-6 de 1ª Coríntios encontramos Paulo fazendo aplicação de eventos históricos-redentivos como uma alusão à Cristo bem como referência ao novo momento que a Aliança se aplica à igreja. E ainda em Gálatas 3.29 Paulo argumenta que Cristo é o Messias baseando seu argumento na distinção entre singular e plural da palavra semente – ou descendente.
III – A INTERPRETAÇÃO NA PATRÍSTICA
            Uma fonte bastante interpretativa na História da Interpretação é certamente os escritos dos pais apostólicos. Por questões de espaço iremos apresentar, de forma lacônica, as ideias gerais das escolas de interpretação deste período:
3.1 – A Escola de Alexandria:
            Para esta escola de interpretação as Escrituras deveriam ser interpretadas alegoricamente.[8]Trata-se de uma das escolas mais antigas de interpretação.[9] O pai dessa escola de interpretação foi Clemente de Alexandria, ele “acreditava que as Escrituras ocultavam seu verdadeiro significado a fim de que fossemos inquiridores, e também porque não é bom que todos a entendam”.[10] Virkler lembra-nos que Clemente de Alexandria “ desenvolveu a teoria de que cinco sentidos estão ligados à Escritura (histórico, doutrinário, profético, filosófico, e místico), com as mais profundas riquezas disponíveis somente aos que entendem os sentidos mais profundos.”[11] O principio da alegorização se difundiu neste período que era quase impossível um escritor deste tempo não interpretar valendo-se dessa escola.
            Ressaltamos também que o conceito “de que a verdade se encontra alegoricamente oculta além da letra e da realidade visível”[12] era dominante neste escola interpretativa, ou seja, o sentido natural e simples da passagem não era considerado a verdade clara. Vejamos um exemplo da interpretação alegórica de Gênesis 22.1-4 em Clemente de Alexandria:
Quando, no terceiro dia, Abraão chegou ao lugar que Deus lhe havia indicado, erguendo os olhos, viu o lugar à distância. O primeiro dia é aquele constituído pela visão de coisas boas; o segundo é o melhor desejo da alma; no terceiro a mente percebe coisas espirituais, sendo os olhos do entendimento abertos pelo Mestre que ressuscitou no terceiro dia. Os três dias podem ser o mistério do selo (batismo) no qual cremos realmente em Deus. É, por consequência, à distância que ele percebe o lugar. Porque o reino de Deus é difícil de atingir, o qual Platão chama de reino de ideias, havendo aprendido de Moisés que se tratava de um lugar que continha todas as coisas universalmente. Mas Abraão corretamente o vê à distância, em virtude de estar ele nos domínios da geração, e ele é imediatamente iniciado pelo anjo. Por esse motivo diz o apóstolo: "Porque agora vemos como em espelho, obscuramente, então veremos face a face", mediante aquelas exclusivas aplicações puras e incorpóreas do intelecto.[13]

Entretanto, o maior expoente da escola de interpretação alegórica foi Orígenes. Ele “é o membro mais  destacado da escola Alexandrina, e é ele quem afirma de forma mais completa e adequada os princípios da alegorização cristã”[14]. Ele sustentava a ideia de que cada parte da Escritura é alegórica. Ele entendia que o sentido literal é “valioso, mas algumas vezes obscurece o sentido primário, que é o espiritual. O literal é para os iniciantes, mas o espiritual é para os maduros na fé.”[15] Virkler nos lembra:
Orígenes acreditava que assim como o homem se constitui de três partes — corpo, alma e espírito — da mesma forma a Escritura possui três sentidos. O corpo é o sentido literal, a alma o sentido moral, e o espírito o sentido alegórico ou místico. Na prática, Orígenes tipicamente menosprezou o sentido literal, raramente se referiu ao sentido moral, e empregou constantemente a alegoria, uma vez que só ela produzia o verdadeiro conhecimento.[16]
Esse sistema interpretativo foi construído sobre a doutrina da correspondência, onde um elemento natural e físico nas Escrituras (sentido natural claro) é acompanhado de um elemento ou acontecimento análogo à realidade espiritual.[17]
3.2 – A Escola de Antioquia.
                Havia uma escola que se fazia oposição ao alegorismo alexandrino que ficou conhecida como Escola de Antioquia. O verdadeiro fundador desta escola foi provavelmente Luciano de Samosata. Outras acham que fora o Presbítero Diodoro o fundador da famosa escola. Entretanto, há dois fundamentais representantes desta escola de interpretação: Theodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Virkler sumariza para nós a distinção entre as duas escolas de forma bastante lacônica:
Teodoro de Mopsuéstía (c. 350—428), defendiam com o maior zelo o princípio da interpretação histórico-gramatical, isto é, que um texto deve ser interpretado segundo as regras da gramática e os fatos da história. Evitavam a exegese dogmática, asseverando que uma interpretação deve ser justificada por um estudo de seu contexto gramático e histórico, e não por um apelo à autoridade. Criticavam os alegoristas por lançarem dúvida na historicidade de muita coisa do Antigo Testamento[18]

Esta escola rejeitou a interpretação alegórica também fez a distinção entre o gênero alegórico e a interpretação alegórica; explicou os textos cristológicos do Antigo Testamento por meio da interpretação tipológica baseada nos padrões regulares das Escrituras, buscavam a intenção autoral como o sentido natural das Escrituras[19]. Ressaltamos que os Reformadores se identificaram com esta escola de interpretação.
3.3  - A Escola do Ocidente.
            Na patrística temos uma escola de interpretação ocidental que é conhecida como a mais eclética (ela vale-se tanto dos princípios dos alexandrinos quanto dos antioquianos). Segundo Kaiser a importância desta escola se dá exatamente porque  nela se insere a autoridade da tradição na interpretação bíblica[20] como algo importante a ser considerado. Os principais representantes desta escola são Hilário, Ambrósio e, especialmente, Jerônimo e Agostinho.
            Agostinho desenvolveu princípios hermenêuticos importantes em sua  obra  De Doctrina Christiana. Nesta importante obra ele ressaltou a necessidade de um sentido literal como sendo a base essencial para o sentido alegórico. Mas, ele mesmo não hesitou em usar o método alegórico de forma livre. Quanto uma passegem necessitava deu análise decisiva ele apelava para a regula fidei (regra de fé), que de acordo com o próprio Agostinho é conjunto de doutrinas da igreja. Aqui a tradição começa a ganhar força na interpretação das Escrituras.
Vale ressaltar que a Bíblia e a tradição (vista como o testemunho da Igreja) devem andar juntas, nos precisamos ouvir a ambas ou como coloca sabiamente um autor reformado presbiteriano:
A Bíblia sozinha seria a religião dos protestantes. O problema e que a Bíblia nunca esta sozinha. O próprio Calvino, que falou da autoridade da Bíblia nos termos mais elevados, sempre leu-a e ouviu-a segundo as tradições. Sua revisão litúrgica foi feita de acordo com as praticas da Igreja Antiga, o mesmo sucedendo com a organização eclesiástica por ele desenvolvida[21]
Agostinho fez com que a tradição se avultasse sobre as Escrituras de forma  prejudicar a interpretação da mesma. Queremos deixar claro que podemos ler a Bíblia com as tradições, o problema encontra-se quando as tradições estão se opondo a Bíblia. A Igreja é a coluna e baluarte da verdade (1 Tm.3.15). E vivemos uma época em que a historia da igreja (que funciona como testemunho para nós) tem sido negligenciada, mais uma vez Leith nos adverte para isso:
Os protestantes têm sido sempre tentados a crer que, de alguma forma, podem ignorar todos os séculos da historia crista, estudando a Bíblia sem ajuda e os embaraços dos que os antecederam. Na verdade, porem, aqueles que se recusam a ler a Bíblia a luz das tradições da Igreja acabam sendo dominados pelas suas próprias tradições históricas e culturais[22]
Agostinho também seguiu, infelizmente, o método chamado de quadriga. Que consistia em compreender que as Escrituras possuíam um sentido quádruplo:
1.      Histórico; 2. Etiológico (uma investigação da origem e das causas); 3. Analógico e 4. Alegórico. Este método surgiu com João Cassiano sobre a cidade Jerusalém ele ensinou: Jerusalém literalmente significa a cidade dos Judeus; alegoricamente  Jerusalém é a igreja (Salmos 46.4-5); Tropologicamente , Jerusalém é a alma (Salmos 147.1-2,12); e, anagogicamente, Jerusalém é nosso lar celestial (Gálatas 4.26). O próprio Cassiano reconhecer que o sentido da quadriga  não se aplicava a todos os textos das Escrituras, e enfatizava a busca pelo sentido natural e literal do texto sagrado.[23]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1.      ANGLADA, Paulo Roberto Batista. Introdução à Hermenêutica Reformada. Ananindeua: Knox, 2006
2.      GRANT, Robert.; TRACY, David. A Short History of the Interpretation of the Bible USA: Fortress Ress,1984
3.      KAISER JR, Walter. C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2009
4.      LEITH, John. A Tradição Reformada – Uma Maneira de ser a Comunidade Cristã. São Paulo: Pendão Real, 1999
5.      LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e Seus Intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004
6.      NICOLE, Roger. New Testament Use Of The Old Testament in: Carl F. H. Henry - REVELATION AND THE BIBLE Contemporary Evangelical Thought.
7.      SCHWANTES, Milton. Dicionário de Hebraico-Português & Aramaico-Português. São Paulo: Vozes e Sinodal,  2003, p.51.
8.       VIRKLER, Henry A. Hermenêutica Avançada. São Paulo: Vida, 1987




[1] KAISER JR, Walter. C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.204.
[2] Idem
[3] SCHWANTES, Milton. Dicionário de Hebraico-Português & Aramaico-Português. São Paulo: Vozes e Sinodal,  2003, p.51.
[4] LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e Seus Intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.51
[5] KAISER JR, Walter. C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.204.
[6] Ibid, p.205-206.
[7] NICOLE, Roger. New Testament Use Of The Old Testament in: Carl F. H. Henry - REVELATION AND THE BIBLE Contemporary Evangelical Thought , p.137.
[8]KAISER JR, Walter. C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.211.
[9] ANGLADA, Paulo Roberto Batista. Introdução à Hermenêutica Reformada. Ananindeua: Knox, 2006 ,p.27.
[10] VIRKLER, Henry A. Hermenêutica Avançada. São Paulo: Vida, 1987, p. 44.
[11] Idem.
[12] LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e Seus Intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.51
[13] VIRKLER, Henry A. Hermenêutica Avançada. São Paulo: Vida, 1987, p. 44.
[14]GRANT, Robert.; TRACY, David. A Short History of the Interpretation of the Bible USA: Fortress Ress,1984, p.56
[15] LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e Seus Intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.132.
[16] VIRKLER, Henry A. Hermenêutica Avançada. São Paulo: Vida, 1987, p. 44.
[17] KAISER JR, Walter. C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.212.
[18] VIRKLER, Henry A. Hermenêutica Avançada. São Paulo: Vida, 1987, p. 46.
[19] ANGLADA, Paulo Roberto Batista. Introdução à Hermenêutica Reformada. Ananindeua: Knox, 2006 ,p.61
[20] KAISER JR, Walter. C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.214
[21] LEITH, John. A Tradição Reformada – Uma Maneira de ser a Comunidade Cristã. São Paulo: Pendão Real, 1999, p. 20
[22] Idem.
[23] KAISER JR, Walter. C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.214.

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