quinta-feira, 20 de julho de 2023

CRISTO DESCEU AO HADES?

 

CREDO APOSTÓLICO: CRISTO DESCEU AO HADES?

Rev. João Ricardo Ferreira de França

INTRODUÇÃO:

            O nosso estudo neste momento compete considerar a declaração credal que diz “desceu ao hades” ou “descendi ad inferna[1], esta expressão tem sido debatida ao longo da história. A motivação desse debate é que tal expressão não pertence ao texto inicial do Credo Apostólico.

            A origem desta expressão é incerta! Kelly lembra que o problema desta expressão é que ela levanta toda discussão sobre o que de fato ela ensina:

Nenhuma das modificações do R que consideramos até agora pode ser considerada de importância decisiva. No entanto, há uma que realmente adiciona algo de substancial ao segundo artigo do credo e que envolve dificuldades exegéticas de ordem média - ELE DESCEU AO INFERNO (descendit ad inferna).[2]

Michael Horton em seu comentário ao Credo Apostólico toma esta expressão como sendo idiomática significando que o sofrimento de Cristo na cruz foi o seu inferno.[3]Esta é uma abordagem que boa parte dos reformados seguem. Inclusive Barth, de forma surpreendente, segue esta linha de interpretação.[4] Esta declaração que Cristo “desceu ao inferno”, lembra-nos, Berkhof “não é tão antiga e nem universal no credo”[5].

I – A HISTÓRIA DESTA EXPRESSÃO NO CREDO.

            A principal dificuldade que se tem com esta expressão “desceu ao inferno” é que ela não se encontra nas versões mais antigas do Credo Apostólico. Witsius, em suas dissertações sobre o Credo Apostólico,  afirma:

É digno de nota que, antigamente, aqueles credos que possuíam o artigo sobre a descida de Cristo ao inferno, não continham o artigo relativo ao seu sepultamento, e aqueles nos quais o artigo com respeito à descida ao inferno foi omitido, de fato continham o artigo relativo ao sepultamento.[6]

Se seguirmos esta abordagem de Witsius então aqui o somente enfatiza a morte de Cristo. “A palavra no original empregado no Credo é ínferos. A frase traduzida por “desceu ao inferno” apareceu pela primeira vez em uma das versões do Credo de Rufino, em 390, e depois não apareceu novamente em qualquer versão do credo, até o século VII”[7]. O próprio Rufino explica a razão desta inclusão quando declara que

a intenção da altearão do Credo em Aquiléia não foi a de acrescer uma nova doutrina, mas a de explicar uma antiga e, portanto, o credo de Aquiléia omitiu a cláusula foi crucificado, morto e sepultado e a substituiu por uma nova cláusula, descendi ad inferna[8]

No Credo de Aquiléia a declaração do símbolo apostólico era assim: “Creio em Jesus Cristo, seu Único Filho, nosso Senhor. O qual foi concebido por obra do Espírito Santo, nasceu da virgem maria padeceu sob Pôncio Pilatos foi crucificado, morto e sepultado,” ou terminava com “desceu ao inferno”; então esta expressão não fazia parte do Credo Apostólico original.

            Na verdade esta expressão “desceu ao hades” fazia uma permuta com “foi crucificado, morto e sepultado”. A expressão ora aparecia no lugar da expressão “crucificado, morto e sepultado”.  Ora era somente a expressão desceu ao hades que aparecia.

            Héber Carlos de Campos nos lembra o cerne do problema sobre este assunto quando ele mesmo diz:

Enquanto houve a omissão da cláusula “sepultado” e o aparecimento da cláusula substituta “desceu ao Hades” ou vice-versa, não surgiu nenhum problema teológico novo. Este apareceu quando as duas expressões acima apareceram no mesmo Credo, uma após a outra. Por volta do século VII, a cláusula descendi ad inferna apareceu em outros credos, mas como um acréscimo a crucificado, morto e sepultado e não como expressão substitutiva dessas coisas acontecidas a Cristo.[9]

Historicamente a igreja sempre entendeu que a expressão “desceu ao inferno” se trata de uma referência à crucificação, a morte e sepultamento de Cristo Jesus. A problemática se deu quando esta expressão apareceu após as expressões anteriores. E, novas ideias teológicas foram trazidas, e ensinos errados foram propagados a partir da inclusão dessa clausula.

II – AS CONCEPÇÃO TEOLÓGICAS NA COMPREENSÃO DA EXPRESSÃO “DESCEU AO INFERNO” NO CREDO APOSTÓLICO.

Consideremos agora as várias concepções teológicas sobre esta expressão que se tem no credo apostólico; em linhas gerais temos, quatro tradições cristãs que interpretam de modo diverso a expressão: 1. Católica Romana; 2. Luterana; 3. Anglicana e 4. Calvinista.

2.1 – A Concepção Romanista:

A Igreja Católica Romana a entende no  sentido de que, após a Sua morte, Cristo foi para o Limbus Patrum (paraíso dos pais), onde os santos do Velho Testamento estavam aguardando a revelação e aplicação da Sua obra redentora, pregou-lhes o Evangelho e os levou para o céu.

Como afirma o catecismo tradicional da Espanha, há quatro infernos: o inferno dos condenados, o purgatóriooel limbo dos infantes e o limbo dos justos ou seio de Abraão. O inferno ao que Cristo desceu não é o dos condenados, mas o lugar onde moravam as almas dos justos que morreram antes de ser consumada a redenção, e que recebe o nome de limbo dos justos (limbus Patrum).”[10]

2.2 – A Concepção Luterana.

Os luteranos consideram a descida ao hades como o primeiro estágio da exaltação de Cristo. Cristo foi ao mundo inferior para revelar e consumar a Sua vitória sobre Satanás e sobre os poderes das trevas, e para pronunciar a sentença de condenação deles. Alguns luteranos localizam essa marcha triunfal entre a morte de Cristo e Sua ressurreição; outros, após a ressurreição.

2.3 – A Concepção Anglicana:

A Igreja da Inglaterra sustenta que, enquanto o corpo de Cristo estava no túmulo, a alma foi ao hades, mais particularmente ao paraíso, a habitação das almas dos justos, e lhes fez uma exposição mais completa da verdade.

2.4 – A Concepção Calvinista:

João Calvino interpreta a frase metaforicamente, entendendo que se refere aos sofrimentos penais de Cristo na cruz, onde Ele sofreu realmente as angústias do inferno.

A interpretação do catecismo de Heidelberg é parecida. Segundo a posição reformada (calvinista) usual, as palavras se referem não somente aos sofrimentos de Cristo na cruz, mas também às agonias do Getsêmani.

III – ANALISANDO OS TEXTOS BÍBLICOS USADOS.

            As diversas tradições possuem abordagens significativas em prol da ideia que adotam sobre a declaração credal. E, usam algumas passagens para justificar que a descida ao hades é uma doutrina oriunda das escrituras.

a)     Efésios 4.9: “ora o que quer dizer subiu, senão que também havia descido até as regiões inferiores da terra?”. Esta passagem é evocada porque a expressão “regiões inferiores da terra” como sendo sinônimo de Hades. Aqui a referência seria “à vinda de Cristo à terra”[11] Calvino rejeita de forma contundente a ideia de que estas palavras significam “purgatório ou inferno”, e declara que estas palavras “nada mais significam que a condição presente na terra”[12], pois, boa parte dos comentadores “entende que a expressão se refere simplesmente à terra”[13]

b)     1ª Pedro 3.18-19:  Esta tem sido a passagem de maior debate nesta questão. A interpretação de que Cristo foi no inferno e pregado aos pais ou aos perdidos tem grande força no meio evangélico de modo geral. Porém, na tradição Reformada essa passagem entende-se que se refere a Cristo pregou aos contemporâneos de Noé, pois, era pregador da justiça de Cristo. (2ª Pedro 2.4-5). Quando Pedro fala dos espíritos em prisão, está se referindo aos contemporâneos de Noé. Que ouviram a mensagem de Cristo através dele, mas rejeitaram, sendo assim espíritos (vidas) em prisão.

c)     1ª Pedro 4.4-6:

Por isso, difamando-vos, estranham que não concorrais com eles ao mesmo excesso de devassidão, os quais hão de prestar contas àquele que é competente para julgar vivos e mortos; pois, para este fim, foi o evangelho pregado também a mortos, para que, mesmo julgados na carne segundo os homens, vivam no espírito segundo Deus.

O foco da discussão se dá no versículo 6 desta passagem. No contexto da passagem Pedro exorta a seus leitores a que não “vivam o restante de suas vidas na carne para as luxúrias  dos homens, mas para a vontade de Deus mesmo que isso ofendam aos seus ex-companheiros”, e, mesmo que eles sejam “ultrajados por eles terão que prestar contas a Deus” que está sempre pronto para “julgar vivos e mortos” – os mortos aqui são os que ouviram a pregação enquanto estavam vivos, pois, o propósito desta pregação era, em “parte, que fossem julgados na carne segundo os homens”[14]

CONCLUSÃO:

            E aqui terminamos o estágio de humilhação de nosso redentor Jesus Cristo. Vimos que a descida ao Hades de Cristo significa que o seu sofrimento na cruz foi o seu hades que o levou a mansão dos mortos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] A forma “ínferos” é usada hoje como uma referência ao lugar dos mortos, e não dos condenados.

[2] KELLY, J.N. D. Early Cristian Creeds .New York: Editora Continuum, 1972,.p378

[3] HORTON, Michael. Creio – Redescobrindo o Alicerce espiritual. São Paulo: Editora Cultura Cristã,2000,,p.100

[4] KARL, Barth. Credo – Comentário ao Credo Apostólico. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p.95.

[5] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1990, p.313

[6] Herman Witsius, Dissertations on The Apostle’s Creed, vol. II, reimpress„o (Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1993), 140.

[7] FERREIRA, Franklin. O Credo Apostólico – As Doutrinas Centrais da Fé Cristã. São José dos Campos – SP: Editora Fiel, 2015,p.177.

[8] CAMPOS, Héber Carlos de. “Descendit Ad Inferna” Uma Análise da Expressão Desceu Ao Hades No Cristianismo Histórico. In: Fides Reformata 4/1 (1999). São Paulo: Mackenzie, 1999, p.1-21

[9] Idem.

[10] OTT, Ludwig. Manual de Teología Dogmática, p. 301.

 

[11] ROGERS, Cleon; FRITZ, Leon. Chave Linguistica do Novo Testamento Grego. São Paulo: Editora Vida Nova, 1985, p.393

[12] CALVINO, João. Efésios – comentário bíblico. São José dos Campos – SP: Editora Fiel, 2007, p.93.

[13] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1990, p.313

[14] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1990, p.314