sexta-feira, 14 de julho de 2023

EU CREIO - UMA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO

 

EU CREIO

Rev. João França*

INTRODUÇÃO:

            Os cristãos reformados de modo geral são acusados de romper com a catolicidade da igreja. O teólogo Presbiteriano B.B. Warfield relembra essa ruptura em seu estudo sobre O Significado dos Padrões de Fé de Westminster como um Credo, ele declara:

Não há separação tamanha na história do pensamento humano como a fenda aberta entre a era apostólica e a imediatamente seguinte. Passar dos últimos escritos apostólicos para as primeiras composições de penas cristãs não-inspiradas é cair de uma altura tão vertiginosa que não surpreenderia se nos levantássemos aturdidos e quase incapazes de determinar nosso paradeiro. Aqui está a grande falha — como os geólogos diriam — na história da doutrina cristã. Há evidência de continuidade — mas, oh, quão inferior é o nível! O rico filão da religião evangélica quase se esgotou; e, embora haja massas de origem apostólica por todo lugar, nada são além de fragmentos, e claramente são apenas o talude que caiu do penhasco acima e se espalhou pela superfície inferior[1]   

Assim, também tem sido em relação ao Credo Apostólico. Muitos crentes ignoram completamente o seu uso, ou até mesmo a sua importância na construção de um cristianismo mais sólido que oferece resposta as inquietudes de nosso tempo. Nessa ruptura a igreja fica à mercê do subjetivismo experiencial que nos legou o pentecostalismo e todos os sistemas emotivos sem uma clara racionalidade da fé!

A palavra “Creio” no inicio do credo é uma espécie de preâmbulo. Isto é significativo, pois, esta palavra permeia a totalidade do credo “creio em Deus”, “Creio Jesus Cristo” e “Creio no Espírito Santo”. Isso implica que o ato de crer conforme o credo persegue a unidade de um sistema que exalta ao Deus Trino. Como nos lembra Franklin Ferreira que o “credo exige que eu, pessoalmente, confie de fato em Deus, que vem a nós como Pai, Filho e Espírito Santo.”[2]

I – A REALIDADE DA FÉ

            Quando nós lemos e declaramos “eu creio em Deus” se evidência diante de nós a realidade da fé. Ela persegue o seu objeto que é o Deus-trino! Então, cabe-nos a pergunta o que significa crer segundo o credo? Ou ainda o que se pode dizer do sentido da declaração “eu creio”? O que isto significa?

1.     Significa a rejeição da incredulidade:

O teólogo suíço Karl Barth declara que a fé é uma decisão na qual se manifesta a “rejeição da incredulidade”[3] a incredulidade do ponto de vista credal é a falsa concepção sobre Deus e sua revelação. Aqui rejeita-se tudo o que é contrário a revelação de Deus nas Escrituras.

O credo exige o ato do assentimento religioso para com a fé. E, nisto se estabelece a rejeição da incredulidade, e tal ato é uma resposta a revelação divina, não é isto que ensina o evangelho? “Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé!” (Marcos 9.24).

Isto não significa que ao rejeitar a incredulidade o homem provoca de si mesmo a fé. Porque peremptoriamente as Escrituras ensinam que a fé procede de Deus como um dom gracioso. “Portanto, tal fé que afirma ‘creio em Deus’, é um dom concedido e sustentado pelo Espírito Santo”[4] “A fé se apega à promessa de Deus, concorda com ela e assegura ao crente que Deus é graciosamente inclinado a ele em Cristo Jesus.”[5]A Escritura de forma clara apresenta a fé como sendo de fato um dom que Deus outorga aos homens (Atos 13.48; Efésios 2.8-9; Hebreus 12.2).

2.     Significa a afirmação da verdade.

Quando se declara “eu creio” no credo se está fazendo uma afirmação da verdade. A fé expressa no credo exige dos crentes afirmem a verdade; como bem coloca J.I.Packer: “A fé cristã significa ouvir, observar e fazer o que Deus diz”[6], isto lembra que é “essencial que os crentes entendam a necessidade de confessar sua fé” (Mateus 10.32; Romanos 10.9) e essa confissão ou afirmação também se dá quando “recitamos o credo no culto”.

E, deve-se lembrar que a essa fé deve “vir acompanhada de uma vida de compromisso com os valores do reino de Deus”.[7] Na declaração credal nós lidamos com a questão da fé como a homologação da verdade de Deus.

II – O CREDO E AS ESCRITURAS.

A segunda pergunta a ser feita é qual é a relação do Credo com as Escrituras? Alguém já disse que devemos lembrar que “o Credo é derivado da Sagrada Escritura. Cada linha é baseada nela. Em síntese, o Credo é o resumo daquilo  que é absolutamente essencial e inegociável para a fé cristã, de acordo com a Sagrada Escritura.”, e como pessoas tementes como “homens e mulheres em Cristo, somos chamados a dizer: ‘creio’”[8]

Toda a doutrina apresentada no Credo Apostólico é derivada das Escrituras e tem elas como fundamento único e sólido. Isto nos ensina que o Credo é a resposta à revelação de Deus dada ao homem; esta é uma resposta concatenada em proposições claras e simples.

Essa relação pode-se ser notada quando consideramos cada declaração que é feita no Credo Apostólico e a base bíblica usada para as mesmas:

1.      Creio em Deus Pai Todo-poderoso, o Criador dos céus e da terra (Gênesis 17.1 e I Pedro 1.2). Afirmação de que tudo o que existe foi criado por Deus. Uma base para a doutrina criacionista. 2. E em Jesus Cristo, o seu único Filho, o nosso Senhor (João 3.16 e II João 1.3); Jesus Cristo é o Filho de Deus, unigênito, pois não existe outro igual. 3. que foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria (Mateus 1.20); Declaração de que o nascimento virginal de Jesus foi conforme a profecia (Isaías 7.14). Este argumento foi incluído no Credo como resposta a heresias que diziam que Jesus não nasceu de forma milagrosa através de uma virgem, mas que seria um filho normal de José e Maria. O fato de reconhecer a virgindade de Maria até o nascimento de Cristo não significa idolatrá-la como santa nem mesmo negar que teve filhos após o nascimento de Jesus (Mateus 1.25 e Marcos 6.3). 4. padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado (Lucas 3.1 e 23.1-25);  Este dado foi incluído para marcar a data, ou período, visto que não existiam calendários. Era costume associar tempos ou épocas aos governantes em exercício. 5. e ao terceiro dia ressuscitou dentre os mortos (Marcos 9.31); Também para confirmar a doutrina da ressurreição de Cristo que também sofreu vários ataques de grupos Gnósticos que deturpava o surgimento de Cristo ressurreto em corpo dizendo que teria aparecido apenas em espírito 6. subiu ao céu e está assentado a direita de Deus Pai Todo-poderoso (Atos 1.10 e Hebreus 1.3); O poder de Cristo ressurreto sobre todas as coisas assumindo sua Divindade. 7. de onde virá para julgar os vivos e os mortos (Mateus 25.31-46 e II Timóteo 4.1). Jesus como supremo juiz de todos os seres humanos em todos os tempos. 8. Creio no Espírito Santo (João 14.26); A fé na pessoa do Espírito Santo como sustentador da igreja e de todos os cristãos. 9. na santa Igreja de Cristo católica, na comunhão dos santos (I Coríntios 10.16 e 12.27); A Igreja como Corpo de Cristo, representando a presença Divina na terra como agentes do Reino de Deus. 10. no perdão dos pecados (I João 1.7-9); O perdão de Deus para todos os pecadores. 11. na ressurreição do corpo (Filipenses 3.10,11); A crença na ressurreição é reafirmada combatendo heresias gnósticas de que não é necessário reviver o corpo5. 12. e na vida eterna. Amém. (João 6.46). A vida além da morte, ou a eternidade para todo o sempre para aqueles que serão salvos.[9]

III – A FÉ É COMUNITÁRIA

            Outro aspecto importante sobre a declaração credal “Eu Creio” – é o aspecto comunitário da fé confessada. O credo dos apóstolos individualiza a fé quando usa esta construção, porém, como um texto litúrgico aponta para a fé da comunidade, isto tanto é verdadeiro que os credos posteriores conjugam sua nota inicial na primeira pessoa do plural declarando: “Cremos”.

            Por que o Credo dos Apóstolos deve ser encarado como a expressão de fé da comunidade? Bullinger responde que aqui encontramos “um breve sumário da verdadeira fé”[10] Devemos lembra que “os crentes fiéis, todos os domingos em todo o mundo, recitam uma ou outra forma dos conhecidos credos cristãos, mas essa rotina nem sempre os inspira a refletir sobre o contexto de sua fé proclamada publicamente”.[11]

A escritura sempre apresenta o povo de Deus reunidos para confessar e declarar sua fé de forma pública. No Antigo Testamento é encontro o chamado “Shemá” conforme lemos em Dt. 6.4-9. O verbo ouvir que está no imperativo no hebraico é “[m;Þv.”- shemá –e tem o sentido de prestar atenção, significa ouvir, mas não é um mero escutar “envolve a ideia de ouvir com atenção”.[12]

O texto citado acima era o primeiro a ser lido de um conjunto de leituras confessionais que carregavam a mesma tônica. O texto de Deuteronômio tinha por objetivo apresentar as seguintes verdades:

a) Que existe apenas um Deus

b) Que este Deus merece ser amado com todo o ser

c) Que estas verdades deveriam perpetuar nas gerações posteriores.

Há também outros dois textos que nos mostram que havia um credo na Igreja veterotestamentária no ato de culto. São eles: Dt.11.13-21 e Nm 15.37-41. Este “Shemá” era o credo do povo, somos informados que o “shemá era repetido três vezes ao dia”[13] pelo povo do pacto; também somos cientes de que este credo judeu era usado liturgicamente na sinagoga.[14]

No Novo Testamento o conceito de confessionalidade é mais presente e bem definido. Isto significa que a Igreja sempre elaborou o seu conjunto de doutrinas a partir da revelação de Deus. No texto neotestamentário lidamos com um grande material que trata da existência de um grupo de verdades a serem cridas e obedecidas.

Estas verdades são conhecidas como “Tradições” que no grego é “paradosis”, este vocábulo significa “transmitir”, “entregar”, “tradição”. A palavra é formada de uma proposição grega “Para” que indica “junto a”, “ao lado de” mais o verbo “didomi” que de acordo com o contexto tem uma gama de significados “dar”, “trazer”, “conceder”, “causar”, “colocar”. Este conceito é percebido pelo texto bíblico de 2 Ts. 2.15: “Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa.”

Em suma podemos dizer que no “Credo a Igreja curva-se perante a Deus [...]”[15] isto implica em observar que “se o Credo é o resumo da Sagrada Escritura, quando nós confessamos o Credo, nós nos prostamos diante de Deus, nós nos ajoelhamos diante daquilo que é essencial e é matéria de revelação”[16] e a comunidade em resposta recebe e aceita tal revelação.

 

 

 

 



* O autor é Ministro da Palavra e dos Sacramentos na Igreja Presbiteriana do Brasil. Atualmente é pastor na Igreja Presbiteriana de Riachão do Jacuípe – BA. Foi professor de Línguas Bíblicas (Hebraico e Grego) no Seminário Presbiteriano Fundamentalista do Brasil – SPFB (Recife), também foi professor de Hermenêutica, filosofia e Exegese de Atos no Seminário Presbiteriano Fundamentalista do Brasil (Patos – PB), também foi professor de Filosofia e Ética na Faculdade Regional de Riachão do Jacuípe – BA.; Atualmente é professor de Antigo Testamento no Instituto Teológico Reformado do Brasil (ITRB – Petrolina) e professor de Hermenêutica no Seminário Presbiteriano Fundamentalista do Brasil – SPFB (Rondônia). É também professor de Exegese do Antigo Testamento no Instituto Teológico Reformado do Brasil-Angola (ITRBA).

[1] Apud, ALLEN, Michael; SWAIN, Scott R. Catolicidade Reformada – A Promessa de recuperação para a teologia e a interpretação bíblica. Brasília: Monergismo, 2021, p.15-16.

[2] FERREIRA, Franklin. O Credo dos Apóstolos – As Doutrinas Centrais da Fé Cristã. São José dos Campos – SP: Editora Fiel, 2015, p.33.

[3] BARTH, Karl. Credo – Comentário ao Credo Apostólico. São Paulo: Editora Fonte Editorial, 2010, p.18.

[4] FERREIRA, Franklin. O Credo dos Apóstolos – As Doutrinas Centrais da Fé Cristã. São José dos Campos – SP: Editora Fiel, 2015, p.38.

[5] BEEKE, Joel R. A Busca da Plena Segurança – O Legado de Calvino e seus Sucessores. Recife: Os puritanos, 2003, p.41.

[6] PACKER, James I. Affirming the Apostle’s Creed. Wheaton, Illinois: Crossaway Books, 2008,p.27

[7] CASANOVA, Humberto; STAM, Jeff. El Credo Apostólico – Manual del Maestro. Grand Rapis: Libros Desfío,1998,p.14

[8] FERREIRA, Franklin. O Credo dos Apóstolos – As Doutrinas Centrais da Fé Cristã. São José dos Campos – SP: Editora Fiel, 2015, p.41

[10] BULLINGER, Hery. The Decades of Henry Bullinger – Volume One. Grand Rapis: Reformation Heritage Books, 2004, p.122.

[11] ASHWIN-SIEJKOWSKI, Piotr. The Apostles’ Creed And Its Early Christian Context. New York, NY: T&T Clark, 2009, p.3

[12] AUSTEL, Hermann J. Shãma’ In: HARRIS, R.L. ed. Theological Wordbook of the Old Testament, 2a ed., Chicago: Moody Press, 1981, Vol. 2, pp.938-939. 

[13] UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p.242. 

[14] COSTA, Herminsten Maia Pereira da. Teologia do Culto. São Paulo: Editora PES, 1985, p.19 

[15] BARTH, Karl. Credo – Comentário ao Credo Apostólico. São Paulo: Editora Fonte Editorial, 2010, p.21

[16] FERREIRA, Franklin. O Credo dos Apóstolos – As Doutrinas Centrais da Fé Cristã. São José dos Campos – SP: Editora Fiel, 2015, p.41-42